domingo, 2 de novembro de 2003

A riqueza natural dos campos do Baixo-Vouga (Ria de Aveiro)


      
          Este mês comemoram-se os vinte anos sobre a descoberta do Baixo-Vouga como refúgio de vida selvagem.
       De facto, até essa data nunca ninguém tinha posto a descoberto que muito pertinho das povoações da beira-ria, do tráfego automóvel da EN 109, das intensas fumaradas das indústrias pesadas de Estarreja e Cacia se encontrava uma tão grande variedade de espécies da fauna selvagem, habitualmente conhecidas das séries televisivas e das enciclopédias da especialidade, pelos então ainda raros, apaixonados pelo "campo". 
       Nunca ninguém, à excepção dos agricultores e caçadores obviamente, tinha tido a mínima noção de que espécies como a águia-sapeira, as garças-vermelhas, as garças-boeiras, os maçaricos e tantas outras existiam naquelas paragens em número tão razoável. Ao contrário das visões e motivações sentidas pelos caçadores, o trabalho desenrolado nos muitos anos que se seguiriam resultariam no estudo dos hábitos dessas espécies, bem como, na inventariação de algumas populações.

        A diversidade de biótopos existentes em toda a região do Baixo-Vouga (juncais, caniçais, arrozais, esteiros com sua vegetação ripícola, prados, sebes, etc.) transforma esta região num complexo ecossistema e por conseguinte num importante refúgio para a vida animal. Quer como nidificantes, quer como invernantes, quer como migradores ou mesmo como residentes, várias espécies, apesar das ameaças que constantemente se lhes colocam (abate de árvores e corte de arbustos, descargas para a laguna, excessos da caça, etc.) têm vindo a resistir estoicamente mantendo os seus níveis populacionais. Outras porém, como a garça-vermelha (
Ardea purpurea) diminuíram drasticamente os seus efectivos na região depois de aqui terem mantido durante vários anos o principal núcleo populacional da Ria de Aveiro.
     
        Se a data presente é motivo de júbilo pelo facto de assinalar a descoberta daqueles valores naturais na região aveirense (conhecida àquela data pela cor negra das suas águas, pelo ar carregado de poeiras e partículas e pelos cheiros nauseabundos que fluíam em seu redor) é também motivo de grande apreensão por tudo aquilo que se devia ter feito em termos da conservação dos recursos naturais do Baixo-Vouga e não se fez. Exactamente isso, a atitude passiva, a atitude de se ter cruzado os braços, a falta de coragem de intervir a tempo, de preservar. Afinal era aquilo que era importante realmente fazer: preservar e se possível melhorar.
      Ao invés tentaram-se muitos disparates. Drenar, emparcelar, monocultivar, poluir. Por outras palavras destruir a única riqueza realmente característica do Baixo-Vouga: as práticas agrícolas associadas ao Bocage e as espécies selvagens delas dependentes. Tudo em nome de uma agricultura desnecessária, pois sem quaisquer bases de sustentação e de competitividade dentro do mercado comunitário.
      Ao invés continua-se a pensar mal para esta região. Construir uma estrada (IC 1) sobre o Baixo-Vouga é tão somente uma forma de trazer ruído, lixo, gases tóxicos e tantas outras agressões a esta bela região. Será tão somente um modo de agredir os seres que naturalmente aqui têm vivido.

      Tudo em nome de um (pseudo)desenvolvimento de algumas terras da beira-ria. Será isto justo? Será que em nome deste desenvolvimento que uns quantos apregoam se podem aniquilar para sempre um património que é de muitos mais? E se se pusesse de parte definitivamente os compromissos eleitorais assumidos a quente em tais períodos e se pensasse racionalmente sobre a melhor forma de rentabilizar o Portugal pobrezinho a que se chegou?
        Claro que as irreflectidas (assim me parece) promessas políticas da altura estão a ser seguidas por uma caprichosa e tonta vontade de as cumprir na actualidade. Esta tonteria é tanto mais grave quanto o facto de estar em causa uma ZPE ou seja um território da Comunidade com especial interesse para a conservação dos habitats e da vida natural associada aos mesmos. Ou será que em matéria de conservação não se aplicam os mesmos preciosismos que se querem cumprir noutros campos?