segunda-feira, 20 de setembro de 2004

A propósito do Dia Marítimo Mundial: correntes marinhas de lixo



Quando caminhamos ao longo da praia deparamo-nos quase sempre com uma enorme quantidade e variedade de lixo depositado essencialmente na parte mais alta da praia. São troncos de árvores e arbustos, sobretudo em sectores litorais fortemente erodidos. São pedaços de rede e cordas de nylon espalhadas regularmente ao longo do areal. São ainda pranchas de madeira, lâmpadas e restos de equipamentos metálicos já enferrujados. Contudo, são os plásticos e as espumas, como garrafas, sacos e bóias que de forma mais intensa povoam as areias das praias.
 
         Um olhar atento mostra que este lixo tão variado, umas vezes chega às praias vindo de terra próxima, trazido pelos cursos de água doce ao desaguarem no mar. Outras vezes, percebe-se bem que é lixo atirado ao mar a partir das embarcações que passam ao largo da costa.
 
         Enfim, lixo, sempre lixo. Lixo sólido produzido pela sociedade consumista e descartado despreocupadamente para a natureza. Lixo da praia que em geral as entidades camarárias portuguesas apenas se preocupam em remover (quando o fazem!) na época do Verão e nos sectores balneares.
 
       
Mas, se a presença do lixo sólido na praia, quase sempre de natureza não biodegradável, constitui um cenário pouco agradável, a presença desta diversidade de objectos a flutuar ou submersos a poucos centímetros da superfície do mar constitui um cenário bem mais preocupante. Na verdade, estas toneladas de materiais arrastados continuamente pelas correntes marinhas e impulsionados pela ondulação mais forte, além de poderem interferir com a segurança da navegação, interferem drasticamente com a sobrevivência dos seres oceânicos.
         
Vários animais, como aves marinhas, cetáceos e tartarugas marinhas são frequentemente feridos por esta carga flutuante. Outras vezes, estes seres são encontrados mortos com objectos estranhos no interior dos seus estômagos, nomeadamente bocados de esferovite ou objectos em plástico, coloridos e de pequenas dimensões, que de tão atractivos se tornam mortais. 
        Com grande frequência, aves, mamíferos e répteis marinhos são também aprisionados em redes de pesca à deriva, acabando por morrer afogados.
Estima-se que os pequenos objectos de plástico matem anualmente 2 milhões de aves marinhas e 100 mil mamíferos marinhos em todo o mundo. Também se constata existir uma grande mortalidade entre as tartarugas-marinhas, pelo facto, de estas ao serem atraídas pelos sacos de plástico, tomados como medusas (seu alimento preferido), serem posteriormente asfixiadas.
        
Além do lixo sólido, os oceanos recebem diariamente enormes quantidades de esgotos, uns tratados, outros não. São efluentes urbanos e industriais. Carregados de tóxicos e bactérias patogénicas, estes efluentes líquidos transformam frequentemente as águas costeiras em autênticas latrinas, com as graves e inevitáveis consequências para a qualidade do peixe, dos moluscos e da saúde humana.
Para evitar os inconvenientes destas descargas de nada serve classificá-las de “controladas”, pois elas são reais e fedem. De facto, se em países mais desenvolvidos os sistemas de saneamento asseguram uma grande eficiência no tratamento das águas residuais, noutros estes sistemas ou são inexistentes ou afiguram-se de grande primitivismo. É por este facto que, após serem transportados quer por rios de grande caudal quer por ribeiros ou valas de pequeno caudal, os esgotos não tratados ou mal tratados chegam às zonas costeiras conspurcando o ar com cheiros nauseabundos, a areia com lamas escuras e a água do mar com colorações que se afastam totalmente do tipificado azul-marinho.
      
A caracterização destas correntes marinhas de lixo não ficaria completa sem uma referência aos frequentes vertidos de fuel, provenientes não só das marés-negras que se sucedem aos acidentes com petroleiros (12% dos vertidos totais), mas também, das múltiplas e clandestinas lavagens de navios-tanque em alto-mar (22%) e sobretudo das descargas arrastadas para os rios (32%). Na realidade, todos os anos são lançados no mar mais de 3 milhões de toneladas de hidrocarbonetos, maioritariamente petróleo, sendo o Mediterrâneo o mar mais poluído por este tipo de contaminação (com 650 mil toneladas anuais).
São estes rastos de poluição por hidrocarbonetos que matam de forma rápida e dramática milhares e milhares de seres vivos (aves, baleias, golfinhos, focas, tartarugas-marinhas, moluscos, etc.) em todo o mundo, ao afectarem os seus sistemas imunitário e reprodutor. São estas correntes pegajosas e negras que levam à extinção várias espécies, além de alterarem com a paisagem e os ecossistemas costeiros. 
       
Lixo sólido ou lixo líquido. Sempre muito lixo atirado aos mares. Lixo cujos efeitos nocivos nos ecossistemas demoram muitos anos a ser reparados demonstrando claramente ser muito perigosa aquela ideia de que os oceanos têm uma imensa (algumas vezes dita ilimitada) capacidade de regeneração.

(Artigo publicado a 07.10.04 no Jornal de Ovar)

domingo, 1 de agosto de 2004

A REN, a RAN e o Sr. Professor!


             Sem Pudor é uma expressão que se poderá usar para traduzir o processo da negação da Reserva Ecológica Nacional (REN) e da Reserva Agrícola Nacional (RAN) desde o aparecimento das mesmas há mais de duas décadas. Sem Paixão é outra expressão que se poderá usar para traduzir o visível desprezo pela valorização da terra portuguesa e dos seus recursos naturais que a REN e a RAN sempre proclamaram. Sem Ponderação é mais uma expressão que poderá traduzir bem, a falta de análise crítica, aberta também a uma participação nacional colectiva não institucional mas profundamente sensível e conhecedora dos problemas ambientais que se colocam no Portugal de hoje. Sem Perspectivas é a melhor tradução de um processo de revisão à partida estigmatizado e por conseguinte nado-morto. 
             Contudo, foi a este imponderado conceito de organização do território que caberia a árdua (impossível?) tarefa de ajuizar cientificamente (com método e imparcialidade) a revisão do estatuto destes dois instrumentos jurídicos. Algumas conclusões interessantes se poderão desde já retirar dessa mesma abordagem «científica».

             A transferência para as Câmaras Municipais do poder sobre o controlo e uso da REN e da RAN parece desde logo caricata, pela previsível falta de uniformidade nos critérios a vigorar municipalmente de norte a sul do país, bem como e sobretudo pelo espaço deixado vago aos jogos de influências.
             A desculpabilização das autarquias pelos crimes ambientais entretanto cometidos no que respeita à urbanização de espaços REN e RAN tange as fronteiras do surreal.
             Proprietários potencialmente impedidos de construir nas suas propriedades e propriedades (em território REN) potencialmente capazes de suportarem construções, parecem faces distintas de uma mesma realidade. Mas não. São apenas e só, permissas, permissivas de toda uma argumentação falaciosa.
             A acusação de que ambos os diplomas legais estão isentos de ideias ordenadoras e de que pelo contrário estarão na origem do desordenamento verificado no território português parece bem mais uma anedota ‘hard core’ do que qualquer facto comprovado pela ciência.
             Enfim, não está em causa que a optimização e funcionalidade da REN e da RAN tivessem que passar por um processo de revisão, já que nada é definitivo mas antes passível de aperfeiçoamento constante. O que parece anormal é que essa revisão não tenha existido, aparecendo em sua substituição algo como um sub-produto da ciência aniquilador do espírito das referidas leis.

              E a propósito de ciência e de cientistas!
              O que é feito daquele projecto para um Parque Urbano na cidade de Ovar?
              Será que à luz destas concepções alternativas sobre ordenamento e desordenamento territorial ainda iremos catapultar obstáculos ao que é «verde» de modo a criar mais e mais espaço urbanizável?
              Será que iremos descobrir que os patos e as galinhas-d’água no rio Cáster ou a vegetação ripícola ainda vão ser factores de desordem do território ovarense?
              Será que querer valorizar o corredor verde que liga a cidade à ria, protegendo os seus recursos, ainda irá constituir um agravo ao desenvolvimento e progresso da urbe?
              Será que à sucessão dos campos de trabalho para revitalização arquitectónica dos cais vareiros se irá seguir a onda da marginalização dos mesmos porque elementos de rusticidade?
              Se assim for, vale a pena e sem demora colocar neste projecto de 2.000.000 de euros definitivamente a chancela SP (Só no Papel)!


 (Artigo publicado a 05.08.04 no Jornal de Ovar)

domingo, 23 de maio de 2004

Atentados ambientais: a destruição da mata da Bicha


         Há algum tempo que a imprensa local anunciava um “namoro” entre a Câmara Municipal de Ovar e um projecto turístico que pretendia destruir uma área significativa da mata litoral a norte do Furadouro, para construção de um centro hípico. Acreditei tratar-se de uma ideia do tipo «estrela cadente», que ora surgia com grande pompa ora desapareceria no vazio da sua inconsistência. 
          No entanto, assim não seria. O facto da Câmara de Ovar ter aprovado já o início da elaboração do Plano de Pormenor que vai regular a construção desse empreendimento faz-me deixar o espaço da incredulidade e cair na realidade desta terra que parece condenada a dar exemplos consecutivos do que é desbaratar os seus recursos naturais.
       Porque será que os governantes locais teimam em descurar o ordenamento territorial da Ria, da costa e agora da mata? Têm de existir razões muito fortes para este posicionamento na sua forma de agir sempre em nome do «turismo de qualidade» e da «oportunidade única». Qualidade de quê? Única para quem?
          
          O anunciado mega-empreendimento consistirá, então, num complexo turístico formado por diversos equipamentos de lazer, uma unidade hoteleira, centro comercial, um número grande de lotes para moradias, campos desportivos e um centro hípico de grande nível internacional. Até aqui, tudo bem. Nada tenho contra o tipo de projecto turístico em causa. Nem tão pouco, ao contrário de alguns, contra os factos de ser um projecto privado e de grande envergadura. Bem pelo contrário, tais atributos poderão contribuir para o seu sucesso e constituir uma mais-valia para o desenvolvimento económico do concelho. Aquilo que me parece efectivamente muito mal, no mínimo por quatro razões, é o local escolhido para a sua localização.
           
            A primeira razão é que não há projecto turístico algum, seja ele de que natureza ou dimensão for, que justifique a destruição de quaisquer recursos naturais, como a mata da Bicha neste caso concreto.
            A segunda razão prende-se com o facto desta mesma mata constituir um ecossistema de grande sensibilidade e importância como elemento estabilizador da zona costeira e por conseguinte ser neste momento desaconselhada toda e qualquer desafectação da mesma.
            A terceira razão tem a ver com o facto de no concelho de Ovar existirem por certo outras parcelas de território, menos nobres em termos da sua importância natural, onde um projecto deste tipo não implicaria impactos negativos em termos ambientais. 
            Finalmente e não menos significativo é que este projecto abrirá um precedente no processo de desafectação de terrenos da Reserva Ecológica Nacional e da Reserva Agrícola Nacional, para todo e qualquer projecto futuro que se pense realizar nesta mata ou noutras áreas protegidas do concelho.
           
            Sobre este projecto, referi logo de início terem de existir razões muito fortes por parte da autarquia para entrar como parceira num projecto com estas características. Quero acreditar que tais razões estarão relacionadas meramente com uma questão de princípios. E porque disso se poderá tratar quero exprimir o meu.
            Bom seria que, em vez de se destruírem as árvores da mata da Bicha para no seu lugar caber um empreendimento imobiliário, se deveria antes valorizar os baldios do concelho construindo primeiro todos os imóveis do projecto e arborizando à vontade, posteriormente, todo o espaço envolvente.
             Poderíamos, assim, assistir de facto ao nascimento de um projecto de qualidade. Porque valorizador de espaços sem valor.
Poderíamos, assim, assistir de facto a um projecto de nível internacional. Internacional, na medida em que seguiria os moldes de um desejado desenvolvimento sustentável não agressivo para com o ambiente, ao contrário de um modelo tipo «amazónico» ou «indonésio», terrivelmente destrutivos, mas nem por isso menos internacionais.
             Aguarde-se, entretanto, pelas conclusões do Estudo de Impacto Ambiental que sobre este projecto terá que ser feito.

(Artigo publicado a 03.06.04 no Jornal de Ovar)

sábado, 28 de fevereiro de 2004

O acidente do "Prestige" e suas consequências.

O acidente 
 Quarta-feira, 13 de Novembro de 2002.
       Quando o petroleiro “Prestige” carregado com 77 000 ton de um fuel de grande densidade, bastante sulfuroso e pouco solúvel, navegava rumo a Gibraltar, tendo Singapura como destino, passando 30 milhas a oeste do cabo Finisterra (Galiza) lança um pedido de socorro dado encontrar-se a adornar perigosamente. Após ter deambulado em várias direcções durante seis dias ao sabor das indecisões governamentais partiu-se ao meio a 200 milhas do referido cabo tendo-se afundado até aos 3500 metros de profundidade poucas horas depois.
       Estima-se que o navio, de 25 anos, proveniente da Lituânia (com bandeira das Bahamas, propriedade de um armador Grego e fretado por uma empresa anglo-suiça) terá lançado no mar cerca de 17 000 ton de fuel desde que sofreu o primeiro rombo no casco até que se afundou e mais 46 000 ton nos dias seguintes.
        A remoção das restantes 14 000 ton do interior do barco está prevista para a  primeira metade de 2004.
 
As marés-negras
        Desde o primeiro dia em que se deu o acidente e até meados de Janeiro de 2003 ocorreram quatro fortes marés-negras que afectaram as comunidades da Galiza, Corunha, Astúrias e Cantábria em Espanha assim como uma parte da costa francesa. Além destes episódios continuaram a ocorrer até ao Verão de 2003, provavelmente devido à limpeza clandestina de outros navios-tanque a passarem na zona, contaminações regulares de fuel especialmente sobre a costa asturiana e da Corunha impedindo o normal decurso da época balnear com o fecho temporário de uma ou outra praia e com veraneantes a serem atingidos na água com nafta.
         No global cerca de 70% das praias arenosas do norte de Espanha acabaram por ser afectadas embora com diferentes graus de gravidade.


A contaminação das aves marinhas
 
        Este grupo animal foi especialmente afectado com este acidente, como aliás sempre acontece em acidentes similares. Independentemente dos problemas gravíssimos produzidos pela ingestão directa de fuel, as aves ao serem atingidas com nafta na plumagem perdem a impermeabilização da mesma ficando diminuídas para poderem arranjar alimento e nadarem. É deste modo que doentes e fatigadas acabam por morrer.
        Neste acidente foram registadas um total de 23 181 aves afectadas (73.6% das quais já mortas), recolhidas ao longo da costa espanhola (84.2%), francesa (12.2%) e portuguesa (3.6%). Refira-se que os números apresentados devem ser sempre olhados como valores muito inferiores aos valores reais de aves afectadas estimando-se que estes últimos sejam 10 vezes superiores.
        Entre as mais de 90 espécies afectadas destaca-se claramente o arau-comum (Uria aalge) com 51% do total dos corpos seguido da torda-mergulhadeira (Alca torda) e do papagaio-do-mar (Fratercula artica) cada um com cerca de 17% do total. Entre as regiões com maiores números de aves recolhidas destacaram-se a Corunha e Pontevedra.
        A recuperação destas aves petroleadas foi desde logo uma das atitudes a tomar. No entanto, o sucesso desta medida traduziu-se numa taxa de sucesso de apenas 10% o que permite concluir sobre a verdadeira dimensão desta tragédia para as aves marinhas.


Outras contaminações
Relativamente a outros grupos animais e logo durante o mês seguinte ao afundamento do "Prestige" deram à costa galega 27 cetáceos pertencentes a 7 espécies diferentes e 16 tartarugas-marinhas pertencentes a 2 espécies. 

Um ano depois
        Segundo estudos realizados por investigadores espanhóis os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (substâncias cancerígenas) que existiam no fuel derramado começaram a entrar nas cadeias alimentares do oceano afectando sequencialmente os microorganismos microscópicos, o marisco, os peixes como o linguado  e o robalo e finalmente o homem. Contudo as conclusões do estudo referiam que os níveis de toxicidade não ultrapassavam os níveis limite.
         As costas espanholas afectadas bem como a costa portuguesa continuam contudo potencialmente ameaçadas por novos casos semelhantes. Na verdade dentro da nossa Zona Económica Exclusiva é frequente a passagem de navios-tanque, frequentemente obsoletos, fazendo transporte de hidrocarbonetos e de produtos químicos diversos, pelo que outras situações de risco se poderão criar em qualquer momento. Esta situação é tanto mais preocupante quanto o facto de não existir um controlo efectivo sobre as lavagens destes navios ao largo da costa e dentro da ZEE por falta de meios de patrulha navais e aéreos adequados.
        Outras dificuldades colocadas no combate a sinistros desta natureza têm a ver com o facto:
- do Centro Internacional de Luta contra a Poluição no Atlântico Nordeste (CILPAN) criado em 1990 pelo Acordo de Lisboa não funcionar na prática revelando-se como muito urgente a sua reestruturação;
- de não existirem os materiais e equipamentos de intervenção necessários, bem como, de um navio equipado para combate à poluição no mar;
- de não existir um sistema permanente de controlo de tráfego marítimo que permita afastar este tipo de navegação para lá das 20 milhas.